Esse
“trem” vai longe...
Paulo Pereira Lima
10º Intereclesial
de Comunidas de Base
CEBs realizam encontro em Ilhéus e celebram os 2000
anos de caminhada.
O Ginásio Municipal de Esportes de Ilhéus mudou de
nome durante o 10º Intereclesial de Comunidades Eclesiais de
Base. Passou a se chamar Arraial Dom Hélder Câmara, em homenagem ao “pioneiro
da Igreja dos pobres”. O encontro se realizou na cidade entre 11 e 15 de julho
e reuniu mais de 3 mil pessoas vindas dos quatro cantos do Brasil, da América
Latina e Caribe e de outros continentes. O eixo principal do debate foi o tema:
“CEBs: Povo de Deus, 2.000 anos de caminhada”.
O “Dom Hélder” serviu de palco para as grandes
plenárias em que se partilhavam reflexões, sonhos, desafios e compromissos
trabalhados nos outros cinco arraiais durante os quatro dias de encontro.
Como os arraiais, outros espaços comunitários
também levavam o nome de pessoas que, de alguma forma, deram “cor, ação e
coração” à caminhada das Comunidades de Base: Dorcelina Folador, Chicão Xucuru,
Dandara, Jaime Wright, Heitor Frisotti, Mãe Menininha do Gantois, Antônio
Carlos Moura, os sem-terra de Eldorado dos Carajás. A militante negra Maria de
Lourdes Nunes não tinha dúvidas: “São eles e elas nossos antepassados, gente
que continua presente em nossa luta”.
Igreja dos pobres
Na cultura nordestina, arraial quer dizer lugar de
festas populares, com barracas de diversão e comida. Em Ilhéus, foi isso e
muito mais. Os arraiais tiveram ares de graça, com tantas celebrações criativas
e um cenário rico de símbolos.
Só para se ter uma idéia, no “Dom Hélder”, sobre o
palanque montado, tambores, atabaques, berimbaus, pandeiros e maracás davam
ritmo à discussão. No fundo, um painel com colchas de retalho formavam um lindo
jogo de cores e formas. Algo muito sugestivo. Representava o que, afinal, se
costuma experimentar num encontro dessa natureza: “diversos povos e culturas,
tendo a fé costurando as diferenças e unindo o que há de singular em cada um,
para formar um belo mosaico que é o Povo de Deus”, resumiu um poeta popular.
Frei Betto, teólogo que participa dos
Intereclesiais desde o início, há 25 anos, assim sintetizou: “O clima era de
Pentecostes. Assemelhava-se a um concílio da Igreja dos pobres”.
E, como num concílio, os participantes colocaram em
comum tantas histórias e experiências construídas desde o começo dos anos 60,
quando surgiram as CEBs no chão nordestino.
Também debateram os desafios que se colocam à
evangelização numa nação tão desigual e marcada por uma legião de desempregados
e excluídos. No documento final do encontro, a “Carta às Comunidades”, ficou
bem claro que a grande missão das CEBs hoje é combater o atual modelo econômico
do país, “o neoliberalismo que tira dos pobres o direito de sonhar”.
Os líderes de comunidades ainda aprofundaram, de
maneira privilegiada, questões que dizem respeito mais à organização interna da
Igreja. Uma delas foi a própria identidade “desse jeito normal de ser Igreja”,
como costuma dizer o bispo de São Félix do Araguaia, Pedro Casaldáliga.
“Fundamentalmente, a Comunidade de Base é um estilo
de vida. Procura conjugar, de modo harmônico e efetivo, fé e política,
celebração e engajamento social. Além disso, a leitura da Bíblia e a dimensão
comunitária são também essenciais e a grande contribuição que as CEBs vêm dando
à Igreja.”
Clericalismo e autoritarismo
Para o bispo-emérito da Paraíba, José Maria Pires,
“essa intuição original precisa ser cada vez mais reforçada e purificada para
que as CEBs possam continuar sua missão de transformação dentro da Igreja e na
sociedade”.
Dom Zumbi – como ficou conhecido por causa de sua
atuação na luta contra o racismo – chama a atenção para o fato de que “está se
chamando de CEBs muita coisa que é boa, que existe dentro da Igreja, mas que
realmente não é Igreja na base”. Ele se refere a grupos ligados até aos
movimentos apostólicos que se apresentam como Comunidades de Base.
Os teólogos da libertação até criaram um “palavrão”
para essa tendência: a tal de “paroquialização” das comunidades. João Batista
Libânio explica: “Há párocos e bispos criando comunidades como se fossem CEBs.
Na verdade, são subdivisões da paróquia, espaços onde as decisões vêm de cima
para baixo e quem tem a última palavra é geralmente o padre”.
Segundo o teólogo, isso tem a ver com a formação
que os seminaristas estão recebendo nos seminários. “Muitos padres jovens não
conheceram, na teoria ou na prática, uma Comunidade de Base durante os anos de
seminário. Ao se tornarem párocos onde existem CEBs, eles as lêem e as
interpretam como se fossem subdivisões da paróquia. Muitas vezes assumem até
posições autoritárias em relação às comunidades, dificultando a vida delas.”
Clericalismo e autoritarismo, queixas que foram
unânimes nas discussões dos arraiais e que apareceram com tintas fortes na
“Carta às Comunidades”:
“Percebemos que, muitas vezes, falta clareza sobre
nossa identidade. Há algumas comunidades fechadas e preocupadas exclusivamente
com assuntos internos. Persiste a prática do autoritarismo tanto da parte do
clero, quando da parte de leigos e leigas”.
Além do mais, o sonho de uma nova comunhão eclesial
“é dificultado pelo clericalismo, pelo machismo, pela centralização do poder,
pela não aceitação da dimensão política da fé”.
Mulher no altar
Outro assunto que teve destaque nas discussões nas
“terras de Gabriela” foi o papel da mulher na Igreja. No item que fala dos
sonhos e desafios, o povo das comunidades ousou reivindicar uma “Igreja
participativa, toda ministerial, missionária”.
Continua o documento: “As CEBs sentem profundamente
estarem quase sempre privadas da mesa eucarística em suas celebrações
dominicais e pedem que a Igreja repense urgentemente a questão ministerial.
Sonham ainda com uma Igreja onde o poder seja partilhado, com espaço para a
participação da mulher nas várias instâncias de serviços e decisões”. Em outras
palavras, as mulheres das Comunidades Eclesiais de Base apelam à hierarquia da
Igreja para que reveja suas posições a respeito do ministério sacerdotal.
Durante os debates do encontro, uma das
participantes foi aplaudida quando disse: “Se servimos para limpar os bancos
das igrejas, também servimos para estar no altar”. A reivindicação apareceu com
insistência em vários outros momentos. Nesse sentido, alguns fatores ajudaram a
pôr lenha na fogueira. Como aconteceu no Nono Intereclesial, em São Luís do
Maranhão, as mulheres foram maioria no Décimo, refletindo o que ocorre no
cotidiano das comunidades.
“Na prática, 80% das celebrações que acontecem nos
fins-de-semana no país inteiro não são presididas por sacerdotes, mas por pessoas
da comunidade. E desse percentual a grande maioria são mulheres”, informa padre
Oscar Beozzo, do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação
Pastoral (Cesep).
“De fato a mulher está ocupando espaços e sendo a
principal responsável pela sobrevivência das comunidades. É só o caso de se
reconhecer os ministérios que estão sendo efetivamente exercidos.”
Ministério como serviço
De acordo com a irmã Mercedes de Budallés, o
aumento do número de mulheres entre os cerca de 60 assessores do encontro
também ajudou a colocar a questão na ordem do dia. “Éramos em 20, três vezes
mais que o Intereclesial anterior. É urgente que se aprove na Igreja católica a
ordenação de mulheres, afirma Mercedes, que leciona para seminaristas e leigos
no Seminário Diocesano de Goiânia. Ela, no entanto, faz uma observação: “Sempre
que o ministério vire serviço, e não poder.”
Outro elemento ajudou a esquentar a polêmica sobre
ordenação de mulheres: a presença “provocativa” de pastoras de outras Igrejas.
Na cerimônia inter-religiosa de abertura da
assembléia, quando a pastora luterana Vera Cristina Weissheimer apareceu, toda
paramentada, cerca de 7 mil pessoas a receberam com um forte e demorado
aplauso. Nos dias seguintes, ela foi insistentemente abordada sobre questões
relacionadas à sua ordenação e às atividades como ministra ordenada.
“Fiquei encantada quando a vi no altar, seria
maravilhoso que nós também pudéssemos ter acesso ao púlpito e ao cálice e
celebrar a comunhão. A eucaristia plena, não pela metade como a gente anda
fazendo”, comenta Maria Cecília, da comunidade Bom Pastor, diocese de Vitória.
Certamente de Roma não virá nenhum sinal positivo
em resposta às queixas e reivindicações das Comunidades de Base. Mas cerca de
60 bispos presentes ao encontro, brasileiros e latino-americanos, assinaram um
documento em que confirmam a caminhada das CEBs e reafirmam a sua importância
para a vida da Igreja. E não só.
Para surpresa de muitos, os bispos querem encampar
“a luta pelo reconhecimento da dignidade e igualdade da mulher nos diversos
âmbitos da vida da Igreja e da sociedade”. Pretendem também apoiar as
comunidades de outra forma: “Com uma maior presença nossa nas bases, assim como
a de padres e seminaristas, religiosos e religiosas”, assinam embaixo, entre
outros, Mauro Montagnoli, Franco Masserdotti, Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno
e Samuel Ruiz.
“Como bolhas de sabão”
Clericalismo, autoritarismo e machismo. Irmã
Teolide, uma das assessoras que acompanhou os trabalhos no arraial Xicão
Xucuru, usa uma imagem até poética para comentar esses e outros obstáculos que
impedem o fortalecimento das comunidades: “As CEBs são bonitas que nem bolhas
de sabão. Elas têm muita cor e muita luz e são transparentes, mas são muito
frágeis.”
Essa fragilidade foi mais uma vez exposta no
Décimo. Os negros presentes lamentaram a forma como o encontro foi encaminhado,
de modo que questões relacionadas à cultura negra não foram contempladas.
À diferença do Intereclesial anterior, no encontro
de Ilhéus não houve temas específicos. Em todos os arraiais a reflexão girou
livremente em torno de quatro grandes eixos: memória, sonhos, desafios e
compromissos que as CEBs deverão assumir para os próximos anos.
“A comunidade negra esperava muito deste
Intereclesial e se preparou seriamente ao longo desses três anos”, diz padre
Antônio Aparecido, o Toninho, membro do Instituto Mariama, que reúne diáconos,
padres e bispos negros. Ele elenca os motivos de tais expectativas: “Porque o
encontro acontecia na Bahia, que é marcadamente negra; precisamente, por ser
Ilhéus a terra onde escravos negros trabalharam nas plantações de cacau e por
se tratar da questão dos 500 anos e do ano jubilar. Simplesmente a gente achava
que a questão negra iria explodir como nunca nesse contexto”, desabafa.
Sobre a introdução de vários elementos da cultura
afro e a participação de yalorixás (sacerdotisas do candomblé) nas cerimônias
de abertura e de conclusão do encontro, Toninho considera um passo avante, mas
que é preciso tomar cuidado. “Como não houve espaço para se trabalhar e
aprofundar a questão do diálogo inter-religioso durante o evento, tal
participação corre o risco de se tornar folclórica.”
“Trenzinho” em Minas – À parte esses deslizes de
tipo metodológico, Toninho aponta como algo muito positivo o fato de que temas
como racismo e diálogo com as religiões de origem africana foram contemplados
nos relatos do pessoal das comunidades e nas manifestações culturais. Entre os
compromissos assumidos no Décimo, está o de “combater a discriminação racial e
apoiar as lutas do povo negro.”
Grupos e movimentos negros da Igreja, no entanto,
encaminharam à Ampliada Nacional, responsável pela coordenação dos encontros de
CEBs, uma carta contendo vários pedidos: incluir a questão do negro como tema
específico e inserir representantes negros na equipe, entre outros. Eles já
apresentaram até uma proposta de nome: Vera Lúcia Lopes, da pastoral afro e da
diocese de Osasco, em São Paulo.
Depois de passar por terras baianas, o trenzinho
das Comunidades de Base agora segue em frente, no gingado da capoeira e ao som
dos tambores e maracás indígenas. Segue rumo à diocese de Itabira, interior de
Minas Gerais, que sediará o 11º Intereclesial, em 2005. O tema já foi
escolhido: “Espiritualidade e Compromisso com os Oprimidos”.
“Uai, uai, uai, a nossa vez chegou”, cantaram os
delegados mineiros no encerramento do Décimo. Eles receberam um enorme círio,
feito a partir de 500 velas que foram trazidas de todos os Estados. Na bagagem,
levaram ainda uma grande bandeira nacional, toda costurada com retalhos de pano
também doados pelas CEBs do país inteiro.
Minas é terra de negros também. De negros bantus,
de tambores, reisados e congadas. “Minas é terra das irmandades, que foram o
primeiro espaço conquistado na Igreja pelo africano no Brasil”, lembra o baiano
Vilson Júnior, estudioso do diálogo inter-religioso.
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